Ontem foi o funeral do meu amigo. Nos seus últimos meses de vida, eu fui várias vezes ao hospital e eu levava um agrado: um sorvete, um chocolate. Nada muito caro.
Engraçado, a gente gasta mais com as pessoas mortas do que com elas em vida. Comprei um buquê simples de flores para levar comigo até o cemitério. Custou 200 coroas. Mais do que o preço de todos os agrados combinados.
Dentro do trem, a caminho do cemitério, entrei numa altercação com indivíduo mal-educado. Depois da discussão ele saiu da cabine, mas eu estava com tanta raiva, que o meu corpo todo tremia.
Cheguei na capela com meia hora de antecedência. Um caixão branco estava no centro da capela. A pastora pegou o meu buquê e o colocou no chão na frente do caixão. Todos os outros buquês que chegaram depois foram colocados no chão também, fazendo uma linha de flores até o caixão.
Sandro morreu terça dia 13 de maio. Eu recebi a notícia 3 dias mais tarde, através de sua advogada. Ela me enviou o convite para o funeral dia 30 de maio e me pediu o número de telefone de duas outras pessoas. Sandro deixou instruções de quem ele queria que fosse informado de sua morte e convidado para o funeral.
Os funerais aqui são diferentes do Brasil. Eles esperam uma semana no mínimo para enterrar ou cremar. Então a gente chora tudo que tem pra chorar e quando chega na igreja para se despedir, dá para se conter e não fica aquele chororô. O caixão é fechado. Então é menos impacto. Nada daquilo de ver o ente querido defunto dentro de um caixão.
Eu não tinha certeza de como seria a cerimônia porque no convite usaram a palavra cremação e dentro da capela tinha uma placa indicando que as cinzas seriam espalhadas no mar. Como nunca fui numa cerimônia de cremação antes, achei que ia presenciar tudo até as cinzas sendo espalhadas. Mas não foi assim. Mais tarde descobri que há poucos crematórios em Copenhague e há fila. Sandro só vai ser cremado daqui uns 5 dias, quando tiver vaga.
Eu também achava que a pastora faria o discurso. Foi assim no funeral da minha sogra. Mas o funeral do Sandro foi muito mais comovente. Um discurso da família em inglês, depois um discurso de um amigo, tanto em dinamarquês quanto em português. Na hora de rezar o pai nosso em dinamarquês, eu fiquei quieta. Não conheço as palavras. Mas na hora de rezar o pai nosso em português, aí eu ajudei. Eu não esperava, mas ele continuou com uma Ave Maria, e aí eu desabei a chorar.
Após os discursos havia silêncio e começou a tocar uma música. Eu estava reconhecendo aquela melodia. Uma música que eu não escutava há pelo menos 20 anos. Tentava lembrar o nome da banda. Pensei em Dire Straits, mas era Pink Floyd: “Wish you were here”. Imagine silêncio total e essa música começa a tocar na capela. O impacto foi muito grande. Chorei demais.
No final da cerimônia, achei que carregariam o caixão, mas o caixão ficou lá e a gente simplesmente caminhou para o lado de fora da capela. De lá fomos para o apartamento do Sandro, para comer um sanduíche, tomar um vinho, e contar histórias da vida do Sandro.
Durante o bate-papo, descobri várias coisas:
Pai do Sandro teve um ataque cardíaco e faleceu duas semanas antes da morte de Sandro. Decidiram não informar Sandro, para não agravar sua situação.
Sandro trabalhava para a Universidade de Copenhague e alguns dos seus colegas estavam no funeral. Um deles era um cientista aposentado, cabelo bem branquinho e o rosto dele me parecia muito familiar. Depois me toquei porque eu achava ele tão familiar. Ele era a cara do personagem Dr Emmett Brown, do filme De volta para o futuro!
A advogada de Sandro estava convidando para o funeral, mas ela mesmo não estava presente na cerimônia. Descobri pela irmã de Sandro, que a advogada disse que queria muito ir ao funeral, mas que a família tinha que pagar honorários para ela. Pode isso? Cobrar para ir ao funeral?
No hospital onde Sandro estava, onde fui visitar, o quarto dele era escuro e a comida não era boa. Quando ele tinha dores, as enfermeiras não davam remédio para ele de imediato. Faziam ele esperar. Imagine as dores de uma pessoa com câncer terminal e as enfermeiras não dão remédio? Foi uma luta, mas conseguiram trocar Sandro de hospital. Me mostraram as fotos do outro hospital. Janelas enormes, muita luz e sol entrando no quarto, uma sacada onde dava para levar a cama inteira lá fora (Sandro já não podia andar) para ele tomar sol, e uma vista linda de árvores verdes. Eu não fui nesse lugar visitar, nem sabia que ele tinha sido mudado de lugar. Mas fiquei muito contente em saber que suas últimas semanas de vida foram num lugar melhor, e ele dormia quase o tempo todo, porque ali recebia remédio suficiente para não ter dor enquanto aguardava sua morte.
Sandro desejava que no seu funeral tocassem 3 canções, mas a pastora não deixou, dizendo que ia tomar muito tempo. Então tocaram somente a música do Pink Floyd. Mas no apartamento, enquanto estávamos todos na sala, tocaram as outras duas músicas: Maria Bethânia, “Tocando em frente”, e Leonard Cohen, “If it be your will”.
Eu achei que já tinha chorado tudo que tinha pra chorar antes do funeral, mas tudo foi tão comovente, que eu não aguentei. E eu ouvia meu amigo Flávio chorando do outro lado da capela. Quando saímos ele me deu um abraço e disse: caiu a ficha que Sandro não está mais entre nós.
Sandro descansou e ficará em nossos corações.